18 de janeiro de 2012

A Livraria Camões


por VASCO GRAÇA MOURA (in “Diário de Notícias” de 18-1-2012)
Entre 1979 e 1989, década em que fui administrador da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, tive de me ocupar da Livraria Camões no Rio de Janeiro. A loja tinha sido adquirida à TAP em 1972, e a livraria ficou ali instalada por ocasião de uma visita de Marcelo Caetano ao Brasil. Ninguém pensou muito na legalidade da operação. E em consequência, tanto quanto me lembro, a livraria Camões estava ilegal nos planos federal, estadual e municipal. Já não tenho presentes todas as razões, mas lembro-me de que a primeira era o facto de, nessa época, nem um estado estrangeiro nem instituições públicas dele dependentes poderem adquirir propriedade imobiliária no Brasil.
O seu estatuto de "tolerada" não a impediu de ter um papel importante, mas havia muitos obstáculos a um funcionamento satisfatório: as transferências para pagamento dos livros implicavam a obtenção de morosas autorizações cambiais, o que era dramático, dada a desvalorização galopante no Brasil. Os fretes internacionais saíam caríssimos. Os transportes internos no destino também. Os livros idos de cá atingiam muitas vezes preços astronómicos lá. As campanhas de promoção eram praticamente inviáveis. Face à imensidão do país, aquele exíguo posto de venda da rua Bittancourt da Silva, mesmo conseguindo facilidades de armazenagem sem custos no Palácio de São Clemente (consulado de Portugal), era menos do que a cova de um dente.
É aí que entra em cena um homem chamado José Manuel Estrela, gerente da livraria. Era uma espécie de Fernão Mendes Pinto do livro português. Mexido e desenrascado, com uma capacidade de improviso notável e um talento fora do comum para as relações humanas, conhecedor de todas as regiões e dialectos (vi-o mais de uma vez identificar a terra de origem dos seus interlocutores brasileiros pela maneira como falavam, qual prof. Higgins de My fair Lady), de todas as universidades e centros académicos, de todos os professores de literatura portuguesa, de todos os livreiros e sebos, e também de um grande número de bibliófilos, escritores e jornalistas, José Estrela imprimiu então um dinamismo notável à promoção da cultura portuguesa: circulava, contactava, mostrava, propunha, divulgava, empreendia, vendia, fazia o possível e o impossível...
Portugal nunca teve uma política cultural digna desse nome no Brasil. Tudo era feito sob o signo da pelintrice: lembro-me, por exemplo, de que para qualquer deslocação em serviço do conselheiro cultural, de Brasília ao Rio ou a São Paulo, a embaixada tinha de pedir autorização a Lisboa...
Os poucos e significativos resultados alcançados, embora quase sempre pontuais, ficaram a dever-se ao mérito e à acção de pessoas que, por uma razão ou por outra, tinham oportunidade de fazer alguma coisa, mesmo quando não dispunham de meios suficientes. E nisso, José Estrela não estava sozinho. Personalidades como António Alçada Baptista ou José Blanco, professores e críticos como Eduardo Prado Coelho ou Arnaldo Saraiva, agentes diplomáticos como Mário Quartin Graça (conselheiro cultural em Brasília) ou, mais tarde, Luís Filipe Castro Mendes (cônsul-geral no Rio), e mais alguns deram uma extraordinária contribuição em que puseram muito de engenho, empenhamento e carolice pessoais e, quantas vezes, dinheiro do próprio bolso. E antes tinha havido Nemésio, Casais e Jorge de Sena, tal como há pouco houve Saramago e agora há Inês Pedrosa ou Valter Hugo Mãe.
Os nossos grupos editoriais estão a construir as suas representações próprias no Brasil. Os circuitos mudaram. Com as tecnologias digitais, a exportação do livro tem-se desmaterializado cada vez mais. As regras jurídicas, os sistemas de pagamento, as modalidades e suportes de edição, as preocupações científicas, os mercados, as técnicas de promoção e venda, tudo isso mudou também.
Leio na imprensa que a Livraria Camões não recebe livros vai para cinco anos. Reduzida a um lugar "mítico", compreende-se que muitas pessoas deplorem o seu encerramento: ela ainda era a âncora possível para muitas coisas ligadas à cultura portuguesa, na falta das políticas que deveriam sê-lo. Honrar esse património simbólico implica que fizesse todo o sentido procurar-se uma alternativa consistente de promoção da cultura portuguesa, tendo em devida conta o trabalho de muitos anos que foi feito a partir dali.



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